quarta-feira, 27 de junho de 2012

XI


Todos grandes dias começam com manhãs, sejam elas grandes ou tranqüilas. Neste caso a manhã era comum. Era uma como outra qualquer. De sol. Em uma Gilead verdejante, de brisa fresca e aromas lúdicos.
Conforme o grande cavalo negro de pelo brilhante a quem nomeara Blacksmith se aproximava do curso d’água, o cheiro de terra molhada invadia suas narinas e ela vibrava de expectativa, sem saber o motivo. Apeou da montaria pousando com leveza no chão úmido e fofo e foi lavar o suor do rosto vermelho de calor.
Talvez fosse o toque, aquele comichão que Alain tinha muito e Cuthbert não tinha nem um pouco e que nela nunca se manifestara, mas algo lhe causava tremores de ansiedade. Estava ficando irritada já, porém, pelo menos naquela dia naquele dia tinha um motivo. Tivera uma discussão com Cort, pois este queria mandá-la ao gramado com os garotos para mais uma exibição infernal de tiro e ela disse não.
De certa forma, a culpa era dele que estivesse naquela situação. Ela contou o que Cuthbert fazia e aquilo acabou por enfurecê-lo, disse-lhe que nunca mais queria voltar a atirar ou saber de pistoleiros. E que, assim que pudesse, deixaria as aulas de Vannay.
Sem que ela soubesse, naquele exato momento, Cort descontava sua irritação sobre os garotos em mais uma enfadonha aula de falcoaria, na qual costumeiramente Roland Deschain se sobressaía entre Cuthbert Allgood, Alain Johns, Jamie DeCurry, Thomas Withman e os outros garotos cujos nomes dos pais não importavam.
Olhou-se no reflexo tremido da água corrente do riacho e ficou lá, ajoelhada por muito tempo.
- Maldito Cuthbert. – Disse em voz alta, pois seus ouvidos queriam escutar o som deste nome saído de seus lábios. Sentia raiva dele por tudo ainda, mas a culpa não era dele. – Maldito Ka. Maldito mil vezes!
Blacksmith andara e começara a beber água ao seu lado. Quando seus joelhos se cansaram de suportá-la, levantou-se e jogou o chapéu sobre os cabelos novamente, com um muxoxo de descontentamento. Era uma pessoa alegre, porém melancólica. Natureza dramática.
Quando acabara de se esfriar e tomar coragem necessária para encarar a viajem de volta sob o sol a pino, avistou algo estranho no chão, algo que a deixou curiosa e a fez caminhar em sua direção para ver o que era.
Estava caído no chão, meio amarelada e suja de terra, mas inteirinha e sem nenhuma rachadura, uma caveira de um pássaro de tamanho médio, que deduziu ter pertencido a um corvo.
Parecia viva, ainda.
- Oi? – Cumprimentou a garota, mas logo percebeu o que estava fazendo. – Que idiota. Fique aí. Adeus.
Arremessou a caveira de corvo no chão e virou-se para Blackmith, mas parou na metade do caminho, virando novamente e encarando a caveira por um longo tempo.
- Você está me vigiando, é isso? – Inquiriu ela, como se o crânio de órbitas vazias a intimidasse. – Quer ir comigo? Está bem, então. Você venceu.
Merry apanhou novamente a caveira, espanando a terra e prendeu-a a uma corrente que tinha no pescoço e colocou de volta. Ficou engraçado, mas era a melhor forma de levar o inusitado amuleto junto com ela.
Montou em Blacksmith. Partiu de volta.

...

No final, acabou descobrindo que tinha mais motivos do que imaginara.Retornou a um galope médio, com o cabelo e o chapéu sendo jogados para trás, e o vento gelando as bochechas. Andara muito aquele dia, passara horas retornando, com o comichão/toque em sua mente, ouvidos e estômago.

...

- Roland desafiou Cort. – Alain estava com a tradicional expressão de quem não sabia que expressão usar.- Roland o quê?! – Exclamou assim que seu irmão encontrou-a, ainda montada, a meio caminho do arsenal e dos estábulos.
- Eu não quero nem saber o que acontec...
- Ele tomou o cajado, Merry. – Interrompeu-a Alain, sussurrando assombrado, sorrindo meio trêmulo. – Ele conseguiu. Ele... Ele é um pistoleiro.
- Eu não acredito... – Merry balbuciou, pois a voz lhe faltava naquele momento. – Quando foi isso?
Alain pensou.
- Há mais ou menos uma hora, está enterrando David.
- O falcão...?
- Ele mesmo. – Assentiu o irmão. – Usou-o de arma. Ele é completamente maluco, na verdade. Um maluco com sorte.
Ela assentiu e não disse mais nada. Desmontou Blacksmith e caminhou lentamente até os estábulos, pensando no que acabara de ouvir de Alain. Roland era um pistoleiro. Logo mais Cuthbert, seu irmão, Aileen casaria... E ela sobraria lá, para seguir adiante com o mundo que já estava seguindo lentamente, sem que percebesse.
Quando Blacksmith se pôs a beber água, sentiu pena do animal bonito de pelo escuro e brilhante que tinha a sua frente. Cavalgara o dia inteirinho, pois já anoitecia. Estava suado e marcado da cela.
Pegou a escovinha e alisou sua pelagem, quando ouviu passos e olhou além do cavalo para ver quem se aproximava. Não pensou duas vezes antes de desatar a falar.
- Que diabos Roland fez hoje?!
- Pois é. – Respondeu o amigo. - Eu sempre achei ele meio estranho, mas hoje ele provou ser completamente retardado, é o que eu digo. Ele merecia os revólveres só pela cara-de-pau que teve ao desafiar Cort dois anos antes do que o próprio pai.
- Onde ele está, agora? – Perguntou Merry.
- Na Cidade baixa, onde mais? – Respondeu Cuthbert, visivelmente desgostoso, apesar de tentar esconder os sentimentos. – Deve estar usando a arma que fica guardada nas calças a maior parte do tempo.
Merry riu, parando de escovar os pelos de Blacksmith e encarando Bert.
- Você está com ciúmes dele, não está? – Perguntou, delicadamente, como era seu jeito.
Ela havia se aproximado mais e encarava-o de frente. Ele não saberia mentir, ainda mais naquela situação.
- Um pouco. – Parecia encabulado, corando um pouco. – Virou homem de todas as formas possíveis.
- Calma.
- Ajudei ele com David. Ele disse que é normal... Com mais responsabilidades... Sei lá. Não entendo. Acho que preciso me tornar um pistoleiro para saber como é.
- Mas logo chegará a sua vez, Bert. – Disse a amiga, meio sem graça também. Odiou-se por dentro. Maldito instinto feminino de cuidar. – Ainda é cedo, Roland se precipitou... Logo também carregará os revólveres.
Isso pareceu perturbá-lo ainda mais.
- Posso não ter a mesma sorte, e ser mandado para Oeste. – Respondeu.
- E você acha que é sorte, Cuthbert? – Merry irritou-se um pouquinho. – Se é sorte, você pode ficar em sua cama dormindo ao invés de freqüentar as aulas e os treinamentos. Claro, existe o ka mas, a não ser que seja um completo vagabundo, não está aqui por acaso. Tem sangue de pistoleiro, não é como eu que...
Calou-se. E ele sabia muito bem o que ela ia dizer a seguir, o que o deixou muito envergonhado, pois era parte de tudo o que ele mesmo já dissera. Ainda bem que anoitecia, e tudo ficava revestido por uma sombra rala que camuflou o rosado de suas bochechas.
- Vou indo... Estou cansada.
- Eu também. Foi um dia bastante estranho.
Merry fechou a portinha da baia de seu cavalo e saiu do estábulo com Cuthbert caminhando ao seu lado, em silêncio, como por milagre.
- O que é esta coisa aí que fica me olhando? – Perguntou ele, com o tom de voz do Bert de sempre.
Merry olhou para baixo e até se assustou em ver que ainda carregava a caveira de corvo pendurada no pescoço.
- Estava me vigiando hoje de tarde durante o meu passeio, e não deixou que eu voltasse sem ele. Então o trouxe.
Cuthbert, que compreenderia perfeitamente qualquer coisa fora do normal, deu risada com gosto e assentiu.
- Será o vigia, então! – Anunciou.
- Olha, eu não pretendia dar nome a ele, mas... Já que você fez isso por mim, que seja o vigia, então. Por mim está bom. Ou melhor:
Ela parou de caminhar, e retirou o vigia do pescoço.
-Tome. – Disse, colocando a corrente de ouro envelhecida em torno do pescoço do amigo. – Fique com ele para você. Muitas coisas estranhas estão acontecendo... Acho que... Acho que será bom.
- Perfeito! – Exclamou Bert. E ela teve vontade de esbofeteá-lo por ser tão bobo. – Eu e o vigia a manteremos informada do que vier a acontecer.
- Ah, tudo bem. – Concordou, sentindo-se uma completa idiota, mas com a noção de que fora ela mesma quem começara a história. – Obrigada.
Então ela se aproximou da caveira e disse algo inaudível, que deixou Cuthbert curioso.
- O que disse a ele? – Perguntou.
- Pedi que ficasse de olho em você. – Ela pensou um pouco antes de continuar. – O resto, não importa.
- Ele me contará, depois.
- Vamos ver.