O que se seguiu à chegada da pequena Merry Smithson a Gilead foi o suficiente para Cort começar a conceber a idéia de atirar na própria cabeça. Foi difícil admitir que estava seguindo uma intuição (muito forte, sim, mas ainda sim uma intuição). Só que, admitir para si mesmo é mais fácil do que admitir ou explicar para os outros o que estava acontecendo.
Definitivamente não nascera para trocar fraldas e limpar a bunda branca dos bebês, ou ensiná-los a falar e andar. Mesmo que (por mais ridículo que fosse) Merry acabasse iniciando o treinamento de pistoleiro, antes disso precisaria ser criada e educada por uma família. Coisa que ele não poderia ser. Teria de delegar. Mas, para quem?
Vannay? A menina iria acabar se tornando filósofa. Não. Ninguém do palácio estava disposto, também. Seria ideal que a criança fosse criada numa casa de pistoleiro, mas seria pedir demais. A solução, única e legítima, estava nas mãos de uma pessoa, e as coisas se ajeitariam como o Ka deseja de acordo com ela.
Entrou na sala grande onde geralmente poderia encontrar o Dihn de Gilead, e sua cadeira de espaldar alto estava vazia. Trazia a cesta com a menina dentro, e estava realmente duvidando sobre suas decisões dos últimos dias.
- Saudações, sai. – Uma voz muito feminina soou atrás dele, fazendo-o se virar. – Longos dias e belas noites.
- Lhe desejo tudo em dobro. – Respondeu, com uma breve reverência.
- O que o trás aqui? – A mulher alta, de cabelos negros e aparência frágil parecia interessada no conteúdo da desta.
- Preciso confabular com seu senhor, sai.
- Entendo... Ele já está se dirigindo para cá, aguarde um instante, por favor.
Cort assentiu e aguardou; não demorou para Steven Deschain adentrar o recinto e dirigir-se a ele.
- Longos dias e belas noites, Cort.
- Meu Dihn, que tenha tudo em dobro. – Respondeu, novamente, com uma breve reverência.
- O que o traz aqui? – Perguntou Seteven, alto e esbelto, com compridos bigodes de pistoleiro e muitas rugas a menos do que viria a ter.
- Estou com um grande problema, e acho que deveria saber, meu senhor. – Começou, odiando sua própria sorte.
Steven dirigiu-se até sua cadeira e sentou-se, encarando Cort com os olhos afiados.
- Prossiga.
- Há alguns dias deixaram isto em minha soleira. – Mostrou a cesta, retirando o veludo verde de cima.
- Oh, mas é tão linda! – Exclamou Gabrielle Deschain, apanhando delicadamente a menina. Não era estranho que houvesse sido escolhida para desposar o Dihn de Gilead, da linhagem direta do Eld; era uma perfeita dama, e muito bela. - Alguma suspeita sobre quem podem ser os pais?
- Seu sobrenome é Smithson. – Respondeu Cort, visivelmente desconfortável.
- Smithson... – Balbuciou Steven, para si próprio.
Um sopro de esperança varreu a mente obscura de Cort.
- Sim, Smithson. – Prosseguiu. – Tentei todos que poderiam ficar com ela, e ninguém a quis. Tencionei levá-la a Debaria, mas houve um problema.
- Podemos ficar com ela, Stevie? – Pediu Gabrielle, quase em tom de súplica, aninhando a garota. – Olhe só! Tão pequena, tão indefesa! Oh, por f...
- Cale-se, Gabrielle. – Ordenou o pistoleiro, com a educação que sua esposa merecia. Mesmo com o tom autoritário, ainda era muito educado. E ela se calou. – Retire-se, pode levar a menina. Preciso falar com Cort em particular.
Ela lançou um último olhar como que pedindo, implorando para ficar com a menina, e depois se retirou. Quando o som de seus passos leves desapareceu, Steven voltou sua atenção para o homem corpulento à sua frente, e fez um sinal girando as mãos como se dissesse: “Prossiga”.
- O nome. O nome me obrigou a ler os anais do Baronato, e eu encontrei Richard Smithson. – Explicou Cort, sem rodeios. – É possível que ela seja a última descendente desse homem, que foi um dos que cavalgou ao lado de Arthur Eld.
Steven Deschain recostou-se, erguendo o rosto e encarando Cort.
- A questão é a seguinte: Por que diabos foram deixar essa criança à minha porta? Sinceramente, não acredito em coincidência, neste caso. É muito para a cabeça de qualquer um admitir que esse nome retorne à Gilead, principalmente nos tempos que se acercam, e venha parar à porta da pessoa responsável pelo treinamento dos pistoleiros.
- Está dizendo, então, que... – Iniciou o Dihn, lentamente, mas Cort o interrompeu.
- Pelos diabos que em toda a minha vida o Toque nunca me disse nada, mas não há outro nome para isso, a não ser...
- Ka. – Desta vez, foi Steven Deschain quem interrompeu.
- Ka. – Confirmou.
Um daqueles silêncios que sempre surgem quando coisas realmente estranhas são ditas dominou o salão onde estavam os dois e prevaleceu por algum tempo. Era impossível supor o que se passava pela mente do pistoleiro de face impassível e olhos profundos. Por fim, ele falou.
- O que você quer dizer, então, é que devemos treinar essa menina como pistoleira, é isso?
- Não sei. – Realmente não sabia. – Eu sei que isto é impossível, Senhor. Que neste mundo, as mulheres desempenham funções condizentes com sua existência, mas acredito que, pelo menos, ela deva crescer em uma casa de pistoleiro.
Seteven Deschain, que era um homem extremamente perspicaz, ouviu a verdade através das palavras de Cort e, após mais momentos silêncio pensativo, assentiu.
- Não vejo mal, em abrigar a criança. – Disse, por fim. – Mas, quanto ao início de nossa confabulação, não creio que haja muito sentido, realmente. Falarei a um dos meus, e pedirei que leve a menina para sua casa.
- Muito obrigado, pistoleiro. – Agradeceu Cort. - Assim retiro um grande peso de minhas costas.
Realmente. Agora, aquilo era conversa para dali a alguns anos. Você diz a verdade, eu digo obrigada.