segunda-feira, 21 de maio de 2012

X

- Eu não sei o que fazer. – Disse Aileen.
- Por quê? Perguntou Merry, sem tirar os olhos do livro que estava lendo.
- Roland.
Merry encarou a amiga. Era de noite, estavam as duas conversando à porta da casa de Cort.
- Como?
Aileen ficou extremamente envergonhada.
- Eu gosto dele.
Agora elas tinham aproximadamente quatorze anos, e já estavam saindo da idade em que homens e mulheres são inimigos por natureza.
- Nossa, isso é realmente estranho, para mim. – Disse Merry, pensando em voz alta. A única pergunta que conseguiu fazer foi: - Por quê?
Aileen ficou pensando, olhando para a amiga, mas sem de fato enxergá-la.
- Não sei...
- Realmente. Você gosta de um garoto que não fala.
- Eu sei, Merry, mas acho que é por isso mesmo.
- Complicado... E o que você pensa em fazer?
A garota dos cabelos escuros recostou-se à parede e apoiou os braços sobre os joelhos.
- Falar com ele não adianta.
- Ele vai rir. – Disse Merry, como se fosse óbvio. – Ou talvez não. Não sei se ele faz isso.
- Isso o que?
- Rir.
- Ah, cale-se, Merry. – Pediu Aileen, rindo, sem imaginar o tipo de homem que aquele garoto calado, de olhos azuis e assassinos, viria a se tornar.
- Olhe, não sei se isso é muito útil, - disse Merry Allice, assumindo a expressão alegre que lhe era mais natural. – Mas vocês vão casar, um dia, não vão?
- Não sei... Não sei... – Disse Aileen, visivelmente confusa, meio rindo, meio desconcertada. – Eu não sei. Não sei o que vai acontecer comigo. Não sei o que é. Não sei o que eu quero.
A este ponto, Merry fechou o livro, e pensou. Realmente não sabia o que dizer à amiga. Também nunca tinha passado por uma situação como aquela.
- Não sei, Aileen. – Respondeu, como que se desculpando. – Por que não tenta ficar mais amiga dele?
- Não dá. Não dá nem para imaginar o que ele está pensando. Ele é muito estranho. Meio frio.
- Não dá. Não dá nem para imaginar o que ele está pensando. Ele é muito estranho. Meio frio.
Merry, que não esperava este assunto, soltou inocentemente um pensamento.
- Ah, Aileen! Pelo menos ele não fala! Veja Cuthbert, sua maior diversão é me irritar.
- Ah, então quer dizer que... – A esta altura, Aileen já se pusera de pé e ria abertamente.
- Não, não é isso! Que horror, Aileen! Não! – Defendeu-se, já imaginando o que a amiga pensava. Mas ria junto, no entanto. – Como pode pensar nisso?
- Só pela associação que você fez agora. – Respondeu Aileen. – Acho que começamos a conversar.
- Você está me deixando com raiva. – Disse Merry, como se fosse natural.
A amiga riu.
- Só por que você se entregou e eu percebi?
- Não me entreguei, nada, porra. – Retrucou. – Por que está fazendo isso?
- Merry, nunca soube como dizer, mas eu sempre desconfiei...
- Desconfiou do quê?
- Que você, e Bert...
- Cale-se. Não há nada, pelo amor dos deuses. Nada. – Continuaria se defendendo até o fim, era justo. – Como eu poderia ter algum sentimento mais além por alguém que tem inveja do meu sucesso? Quando eu me dou bem? Quando Cort me elogia? Quando eu atiro melhor? Até a amizade se torna difícil, assim.
- Eu não sabia disso. – Diante dessas revelações, Aileen parecia sem-graça. – Desculpe, mas eu não sabia que ele agia assim com você.
- Sempre, Aileen... Sempre. – Merry, que nunca se abria para ninguém, começou a contar. – Desde antes de você chegar. Ele passou meses sem me olhar na cara por que eu acertei um tiro vendada.
- Vendada? – Espantou-se a amiga.
- Sim. – Confirmou, dando um sorrisinho pretensioso. – Na frente dos garotos. E de Roland, também. E de Alain, e de Jamie e de Thomas. Ele ficou sem falar comigo por muito tempo. Alain disse que era ciúme. Talvez esteja certo. Ele é bom no toque.
“Hoje eu falo com ele normalmente, mas é difícil. Nunca nos relacionamos muito. Sempre que começávamos a nos aproximar, ele mudava a forma de me tratar e voltávamos ao ponto anterior.”
“Agora eu não quero mais nem saber.”
- E o que ele faz? – Aileen parecia curiosa, e aproveitava a fase prolixa da amiga, que nunca contava muito de si própria para ninguém.
- Ah, sempre faz brincadeiras a respeito de eu atirar, e assistir às aulas de Vannay junto com eles. Diz que eu não preciso saber do Eld, nem de Ka, nem de nada. – Merry começou a listar. – Que eu nunca vou ter os revólveres, por que eu sou mulher, e nunca vou me casar. Ele sempre brinca, daquele jeito idiota dele, mas não faz idéia do quanto eu fico mal com estas coisas! E parece que alguns minutos depois já passou, que ele simplesmente esqueceu tudo o que disse! Maldito seja! - A este ponto Merry estava vermelha e segurava o choro. - Uma vez... Não faz tempo. Ele disse a pior coisa que eu já ouvi.
- E o que era?

...

Lembrava-se perfeitamente da cena. Estava parada sozinha no gramado, olhava para os mesmos velhos crânios de búfalo, e inspirava os mesmos velhos aromas, dos quais sentiria muita falta num futuro não muito distante. E o som do vento. O som do vento balançando o capim alto e de gosto adocicado. Aquilo tudo era uma vida maravilhosa. Todas as cores brilhavam de expectativa, pelas lentes de uma idade onde a expectativa está sempre latente, como uma dor de dente ou enxaqueca.
Usava uma roupa um pouco engraçada. Era um vestido simples, bege claro, sem muitos adornos e rendas, à altura dos joelhos. Prendera um cinto fino ao redor dos quadris que começavam a ser moldados pela puberdade, de onde pendiam os coldres das armas de treinamento. Ela havia achatado os cabelos sob um chapéu de abas largas e um pouco grande para o diâmetro de sua cabeça. Estava muito sol, mas além disso, realmente gostava de usá-lo. Achava de alguma forma sexy, mesmo que em sua idade aquilo não tivesse significado nenhum nem mesmo para ela.
Repetia mentalmente a lição, em um loop eterno: “Eu não miro com a mão. Eu não atiro coma mão.” De olhos fechados, tentando utilizar toda a extensão de cada um dos sentidos, abriu os lábios e, na hora que começou a dar forma às palavras, uma voz de garoto falou às suas costas.
- Vai atirar no escuro outra vez?
Virou-se. Era Cuthbert.
- Sim. – Respondeu, voltando a atenção ao alvo. – Quer ver outra vez, para ver se aprende?
- Isso está errado. – Disse ele. – Não entendo.
- O que você não entende, Cuthbert?
- Não me leve a mal, mas não sei por que você está aqui, sério. – Ele falava sinceramente.
- Estou treinando minha pontaria. – Respondeu.
- Eu sei. Mas por quê? – Insistiu. – Por que você tem que aprender isso?
- Você vai começar com isso outra vez, Bert? – Merry já se irritava. – Eu também não sei o que eu faço aqui. Mas eu tenho que fazê-lo.
- E como você sabe?
- Não sei como eu sei. - Retrucou, prontamente. – Mas acho que você não tem prestado atenção ao que Vannay diz. Existem coisas que devemos fazer. E essa é uma das que eu devo fazer. Me desculpe se incomoda você.
- Ah, sim. Entendo. – Respondeu o garoto, no tom jovial que sempre usava. – Você está falando do Ka, então.
- É, talvez esteja... Pode ser isso. – Merry pensou. A conversa estava realmente agradável. A presença de Cuthbert era algo que a agradava muito. E a expectativa era que, se ele compreendesse de uma vez por todas, nunca mais pegaria no seu pé. Doce ilusão. – E eu não tenho escolha. Cort me ensina, eu aprendo. O que posso fazer? Não me dedicar seria como esquecer a face de meu pai.
Cuthbert soltou uma risada pelo nariz e disse a pior – talvez a segunda pior – coisa que Merry Allice Smithson já ouviu em toda sua vida.
- E como você poderia esquecer, se não tem nenhum pai para recordar a face?
Não soube quanto tempo ficou encarando o garoto. Tentando, talvez, imaginar como uma coisa daquelas saía dos lábios de uma pessoa que se dizia sua amiga. Como uma coisa daquela saía dos lábios de uma pessoa aparentemente tão... Tão...
Tão doce.
Antes de dizer alguma coisa, Merry assumiu uma postura de movimentos adultos, levou a mão esquerda ao lado direito do cinto e puxou o revólver com um movimento rápido e aberto, e acertou o lado do rosto do amigo com o cabo.
Cuthbert caiu para trás, mais de surpresa do que de dor, e encarou Merry por baixo quando sua sombra se espalhou sobre ele. Com um gesto natural e um pouco cômico pela seriedade que aquilo tinha envolvendo crianças, ela empurrou a aba do chapéu para trás, deixando a franja meio curta aparecer, e apontou a arma em direção ao garoto.
- Por que fala assim comigo? – Perguntou, com a voz irritada. Levaria ainda algum tempo para que adquirisse o tom sem expressão dos que detém plenamente o controle das situações. – Você diz que é meu amigo, mas não fala assim com ninguém mais. O problema é comigo, Cuthbert? Não precisa mais falar comigo, se quiser. Não precisa nem respirar mais o mesmo ar que eu. Vou pedir a Cort que nunca mais me mande para cá atirar com vocês, e para nunca mais ir às aulas de Vannay.
“E, quanto a isso que acabou de me dizer. Saiba que eu posso escolher entre a face de Christopher Johns ou de Cort, ou até mesmo da porra do Smithson que eu não sei quem é. Mas eu faço questão de lembrar. E você – ela entoou as próximas palavras com nítido desprezo, - você parece fazer questão de esquecer a do seu.”
“Acho que você devia ir pra casa e olhar bem para ele para ver se você lembra. Seu imprestável. E suma da minha frente antes que eu atire.”
Com uma expressão indefinível, que com mais traquejo de vida Merry saberia reconhecer como vergonha, o garoto levantou e a encarou. Algo em seus olhos castanhos tinha um pedido silencioso de desculpas, que a deixou com pena.
Chegou a abrir a boca para dizer algo, mas não conseguiu. Cuthbert virou-se a abandonou o local, andando lentamente e com os ombros levemente curvados. Aquele não era o Bert de sempre. Era um Bert triste, envergonhado. Sentiu pena.
Antes que o amigo saísse de seu campo de visão, jogou o revólver no chão e sentou-se na grama alta, com as pernas cruzadas, e começou a chorar soluçando alto.

...

- Que coisa horrível!
- Pois é. O que se faz depois disso?
Aileen encarou-a.
-Ka. – Finalizou Merry Allice. – Deixo por conta. O que tiver de ser, vai ser. Depois disso acho que Bert enfim enxergou que estava agindo de maneira errada comigo, e me trata como a qualquer outra pessoa.
“Então que fique claro que eu não tenho nada a ver com ele, ok?”
Aileen assentiu.
- Se você diz.

...

Deixar por conta. Os seres mais inteligentes vivem suas vidas cientes de que estão à mercê da grande roda. Nem mesmo o mais forte objetivo sobrevive à força do Ka, quanto mais ela, que não tinha objetivo algum, nem mesmo o de derrubar Cort e apanhar o bastão dali alguns anos.
Só que o jogo estava chegando ao ponto onde todos os peões, inclusive ela, começariam a jogar.

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