terça-feira, 8 de maio de 2012

VIII

Muito cedo, pegou numa arma pela primeira vez. Era uma pistola de cinco balas, como as dos garotos, e não era sua, assim como as dos garotos não eram deles. Cort lhe ensinara alguns versinhos que repetiria por toda a sua vida, até mesmo nos momentos em que uma possível corrupção lhe pareceria o caminho mais fácil. Eram os tais versinhos capazes de distinguir um pistoleiro de um proscrito.
Eu não miro com a mão. Eu miro com o olho. Eu não atiro com a mão. Eu atiro com a mente. Eu não mato com a arma. Eu mato com o coração.
Era tudo muito coerente em uma idade na qual não precisava saber de coerência, porém, futuramente, palavras duras saídas de lábios doces e rosados a despertariam para a realidade. Oito anos era uma boa idade. Já decorara o catecismo e atirava como adulto. No entanto, os sentimentos de garota ainda esperavam por serem despertos, e não tardaria a acontecer.
...
- Vejam Roland, seus vermes! - Disse Cort, com nítida impaciência. –Ele atira melhor que todos vocês juntos, e ainda é péssimo. Não consigo dizer quanto vocês são ruins. Melhorem, ou não haverá mais pistoleiros em Gilead daqui alguns anos!
O rosto de Roland expressava nada, como sempre. Seu irmão, Alain, tinha a expressão extremamente aflita. Dentro dela ardia um nervosismo que a fazia retesar todos os músculos para descarregar a ansiedade por mostrar que sabia mirar como o olho, atirar com a mente e matar com o coração. Porém este sentimento que lhe era tão conhecido, foi tirado de sua mente por alguns instantes, como se uma mão invisível os puxasse por uma cordinha e, por um momento, sentiu que poderia rir da situação. Ocorreu quando um de seus amigos lhe encarou, como uma expressão dramaticamente entediada.
- Tire este sorrisinho da cara, gusano! – Cort se dirigiu ao garoto de cabelos castanhos à direita. - Preste a porra da atenção, ou morrerá como esse maldito sorriso idiota nos lábios.
A expressão de Cuthbert ficou séria tão rapidamente que Merry teve que se controlar pra não sentir medo. Era como se o amigo tivesse tirado uma máscara. Quem seria, realmente, a pessoa por trás daquele rosto meio bobo? Desde então não sossegou até descobrir. Foi descobrir um dia antes da batalha sobre a Colina de Jericó. Tarde demais.
- Merry Allice! – Tomou um susto, retornando a realidade; como se a cordinha que puxou sua ansiedade fosse elástica e a mão que a segurava a tivesse soltado. – Olhe bem para aquele crânio. Olhe bem.
A garota olhou para a cabeça em osso do boi que fora presa à madeira, a uns vinte e cinco metros de distância. - Alain, amarre isto nos olhos dela, agora. – Entregou uma venda ao garoto.
Com a expressão triste (e um pouco engraçada), Alain amarrou a venda atrás da cabeça de sua irmã. Ela tremia de ansiedade e medo. Já sabia o que estava acontecendo.
- Vamos, garota, diga suas palavras e acerte o alvo.
Ela inspirou fundo, levando a mão direita à cintura, para facilitar.
- Eu não miro com a mão. Aquele que mira com a mão esqueceu a face de seu pai. Eu Miro com o olho.
- Justo.
- Eu... Eu não atiro com a mão. Aquele que atira com a mão esqueceu a face de seu pai. Eu atiro com a mente. – Sua voz tremia um pouco.
- Então nos prove.
- Eu não mato com a arma. – Sua voz vacilou, mas quanto seus lábios saborearam verbo matar, retomou o controle de suas emoções e, pela primeira vez, o fogo da batalha, tão conhecido de todos os pistoleiros, a deixou extremamente concentrada. Ela tinha o poder em mãos, de acabar com qualquer coisa que passasse por seu caminho. Então prosseguiu com a lição. - Eu mato com o coração.
-Então mate!
Ela levou menos de um segundo para sacar a arma e acertar em cheio no centro do crânio. Foi um único tiro, uma ação limpa, e sabia que tivera êxito, pois o que se seguiu ao eco do tiro foi o mais completo silêncio. Quando percebeu que a prova havia acabado, colocou a venda sobre a testa e olhou ao redor. O sol amarelo de Gilead ofuscou seus olhos, como um falcão que acabara de ser liberado para a caça. Podia enxergar cada cicatriz no rosto de Cort.
- Esta garota nunca terá um pelo na cara, e consegue atirar como um verdadeiro pistoleiro.
Apesar do elogio a ter deixada roxa de tão corada, ela relutou em aceitá-lo.
- Mas, Cort, eu não acertei sem a venda! – Contestou ela.
- Você mirou com o olho, antes de tê-lo tampados E atirou com a mente. Percebem? – O tom de Cort parecia mais ameno. – Percebem que devem agir assim para não serem mortos e acabarem regando a terra com seus sangues de verme? Agora vão embora daqui e pensem na lição.
...
- Como você fez aquilo? – Agora a voz de Alain tinha assombro explícito.
-Eu não sei, Al, juro... – Respondeu ela, baixinho, tirando a venda por cima da cabeça, a mão direita ainda segurando a pistola de treino. – Acho que preciso aprender a fazer isso com os olhos abertos, agora...
Roland estava parado um pouco distante, com Jamie DeCurry a seu lado. Cuthbert foi embora sem falar com qualquer um deles, mas antes lhe lançou um olhar cavernoso, cheio de mágoa e (desconfiava ela) inveja. Aquilo a entristeceu, embora não soubesse o porquê. E Alain percebeu, por que Alain percebia muitas coisas.
- Não ligue. Bert está com ciúmes. – Disse. – Por que você atira melhor que ele.
- Mas eu não atiro, Alain! – Exclamou ela, irritando-se. - Eu só dei sorte!
- Não deu, não. – Riu-se o irmão. – Você é boa. Deve estar no seu sangue, sei lá.
Aquilo foi estranho. Eram irmãos, mas na eram filhos dos mesmos pais, e não era segredo entre eles.
- É, talvez esteja... – E não disse mais nada.
Deixou o campo onde treinavam pontaria sozinha e sem falar com mais ninguém, e a expressão do amigo não saiu de sua cabeça por um longo tempo.

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